Eu mesma, arquitraidora de
mim mesma; / Minha mais insincera amiga, minha mais mortal amiga, / Meu
obstáculo em qualquer estrada que eu vá.
Christina
Rossetti, em seu poema Who shall deliver me?,[1] se contorce em sua imaginação
à medida que busca algum meio de salvar-se do seu pior inimigo: ela mesma. Ela
suplica a Deus que lhe dê força para suportar o seu “inalienável peso de
preocupação”: ela mesma. Ela corre para o seu quarto e fecha a porta, para
impedir a entrada de todos os outros com sua tagarelice tediosa, mas não pode
escapar de quem mais detesta: ela mesma. Ela deseja ansiosamente recomeçar a
vida com uma lousa limpa. Ela roga a Deus que a robusteça contra sua própria
“voz patética”.
Talvez
com menos drama – contudo, talvez, às vezes, com ainda mais –, cada um de nós
se sente traído por si mesmo. “O nosso coração nos condena” (1 João 3.20)
e parece não haver jeito de proteger nossos ouvidos da voz de autoacusação.
Esse acusador interno insulta a qualidade da nossa fé: “Seu tolo. Você pensa
que Deus se impressionará com o seu tipo de religião?”. Ele cataloga
minuciosamente os nossos pecados, desde a infância até esta semana, e indaga:
“Pode semelhante fé salvá-lo?”. Ou ele cava até o mais fundo e mais delicado ponto
de nossa consciência, encontra o pecado do qual temos mais vergonha e sustenta
que aquilo é imperdoável e que estamos além do alcance da misericórdia de Deus.
A beleza
da Bíblia é que ela nunca nos deixa pensar que estamos sozinhos em nossos
temores. Rossetti sabia disso: o título do seu terrivelmente íntimo poema vem
diretamente dos lábios de Paulo em Romanos 7.24. Ali ele considera a loucura do
seu próprio pecado e a sua inabilidade de amar a Deus do modo que deseja – e
das profundezas ele exclama: “Quem me livrará?”. Ela estava seguindo as pegadas
de Paulo pelo vale da sombra da morte.
Paulo
encontra o caminho para sair daquele lugar sombrio: imediatamente após o seu
clamor desesperado, ele prega a si mesmo. Ele proclama, em resposta à sua
própria pergunta: “Graças a Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor!” (v. 25) e
“Portanto, agora já não há condenação para os que estão em Cristo Jesus” (8.1).
Nós precisamos aprender este padrão: o movimento da autoacusação e da
autocondenação para a autoproclamação das boas novas de Jesus Cristo.
Paulo
provavelmente aprendeu isso pelo hábito de orar os salmos, pois Davi
frequentemente pregava a si mesmo. Os filhos de Corá também apresentam um claro
modelo disso nos Salmos 42 e 43, possivelmente uma única composição de três
lamentos. No primeiro lamento (42.1-4), o salmista tem sede de Deus e anela por
estar com ele, mas se sente distante e até mesmo separada dele. No segundo (vv.
6-10), ele se sente esquecido por Deus e oprimido pelos seus inimigos,
sobrecarregado e afundado em ondas de tribulação – ao ponto de ele experimentar
o seu medo e angústia como uma ferida mortal em seus ossos. No terceiro
(43.1-4), ele se sente rejeitado por Deus.
Cada
lamento é seguido por um breve, mas potente, sermão evangélico – o mesmo sermão,
repetido como um refrão:
Por que
estás abatida, ó minha alma? Por que te perturbas dentro de mim? Espera em
Deus, pois ainda o louvarei, a ele, meu auxílio e Deus meu. (Salmo 42.5, 11,
43.5)
Observe a
mudança de si mesmo (“ó minha alma”) para Deus (“espera em Deus”). A esperança
ressuscita quando o coração volta o olhar para Deus. Paulo fez o mesmo,
voltando-se do “miserável homem” que ele era em Romanos 7.14-24 para Deus, por
meio de Jesus Cristo, no versículo 25. À medida que o coração sonda interiormente
– somando pecados passados, rememorando fracassos passados, lamentando
sofrimentos –, ele apenas encontrará razões para a dúvida de si mesmo, o
desencorajamento e o temor.
Devemos
pregar o evangelho a nós mesmos. Isso exige que mantenhamos nosso rosto na
Bíblia, ouvindo a voz de Deus, encontrando a nossa confiança nele e em suas
promessas, e não em nós mesmos. O que nós descobriremos na Palavra é que, “se o
nosso coração nos acusar, certamente, Deus é maior do que o nosso coração e
conhece todas as coisas” (1 João 3.20). Isso é verdadeiro – ele sonda o
nosso coração de modo mais penetrante do que a nossa consciência pode fazer e
sabe que nós somos de fato piores do que jamais imaginamos.
Mas, a
despeito disso, “Cristo morreu em nosso favor quando ainda éramos pecadores”
(Romanos 5.8, NVI). Quando Paulo reflete sobre isso em Romanos 8.31-39, ele
percebe o impensável: Deus está do nosso lado – mesmo contra o nosso coração.
Paulo se aquece sob a revigorante luz dessa notícia até que não haja mais
ninguém para acusá-lo. De fato, o pensamento de que Deus iria voltar-se contra
nós, depois de entregar o seu Filho por nós, ou de que o Filho iria nos
abandonar, quando foi ele mesmo que morreu por nós e que vive a interceder por
nós – bem, esse pensamento é absolutamente impossível.
Como
Paulo, Rossetti ao final volta-se de si mesma e descobre que
Contudo, há Alguém que pode refrear a mim
mesma, / Que pode tirar de mim o fardo sufocante / Quebrar o jugo e me pôr em
liberdade.
[1] N.T.:
“Quem me livrará?”, sem tradução em português.
Por:
Kris Lundgaard. © 2013 Ligonier Ministries. Original: Fear of Self.
Este artigo faz parte da edição de outubro de 2013 da
revista Tabletalk. Tradução:
Vinícius Silva Pimentel. Revisão: Vinícius
Musselman Pimentel. © 2015 Ministério Fiel.
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